sexta-feira, 9 de agosto de 2013

No dia do fusca

No dia da abordagem perto do fusca, fui surpreendida a espiá-lo pelo retrovisor:
Com um sorriso largo uma idosa atravessou a rua para lhe dar um abraço. E ele retribuiu com um sorriso igualmente gentil. Ela dizia coisas como “quanto tempo, como você está? Como é bom te ver, nossa. Tá bonito”. E aquele vozeirão respondia sorrindo um pouco sem jeito. “obrigada”.
Nesse diálogo rápido entre ele e a senhora, eu me diverti quando ele, surpreendendo-a, disse, sem pestanejo: “bom, agora sou gay”. E a senhorinha tentando não aparentar espanto, disse apenas “ah é? Nossa, é mesmo? Ah, mas o que vale é que você é um bom menino. É mesmo?”. E ele sorrindo satisfeito com a peça que pregara na velhinha, confessou um “ to brincando”.  E era perceptível o alívio no rosto dela. “Aaaaah boom” .E riram juntos. Ela se despediu. Ele passou ao lado do fusca e eu fingi que não estava observando, mas não tive como não olhar.
Dissemos “oi” e sorrimos. E eu aprendi muito sobre ele com o que vi. Naquele dia eu decidi que podia confiar na procedência do rapaz.

O episódio do geladinho


Acho que de tanto ficar curiosiando sobre ele, minha mente (que eu ainda não sei porque funciona assim) me devolveu um flashback de infância, uma imagem de um rapaz falando comigo quando eu voltava da escola.
Eu com uniforme do colégio municipal, tranças no cabelo, ele um adolescente, mas não lembro bem dos traços. Lembro, no entanto, claramente a voz. Eu sei que eu era muito nova porque minha mãe tinha ido me buscar na escola, junto com outras mães e seus outros filhos da mesma idade e do mesmo bairro. Eu voltava com mais outros coleguinhas, subindo a rua da minha casa,
brincando pelo caminho, deixando as mães para trás.

        Tinha sido esta sim a primeiríssima abordagem: “Olha, fala pra sua mãe que os geladinhos que ela fazia são os melhores da cidade. Eu fui comprar outros depois, mas nenhum se compara àqueles dela, fala pra ela. Se ela voltar a fazer eu com certeza compro mais”. Aí eu voltei correndo pra dizer pra minha mãe o elogio do rapaz à suas habilidades na cozinha. Ela ficou agradecida, talvez tenha acenado pra ele de volta, não me lembro bem.
 
        A produção do geladinho aqui em casa durou cinco ou seis meses, eu me lembro mais ou menos dessa época. Iguarias como beterraba com leite condensado eram sucesso na rua. Não consigo esquecer de uma menina que nos deve 10 geladinhos até hoje.  Mas a minha mãe não voltou a fazer depois do elogio. “Dá muito trabalho”- ela dizia.

       E, em torno de, talvez, doze anos depois, ele volta ao meu cotidiano. Ele certamente não sabe que eu sou a filha da moça que fazia geladinho. Achei também que só eu fosse capaz de lembrar dele.
Esses dias falei pra minha mãe que o “rapaz do geladinho” me fez a delicadeza de um elogio na rua. Minha mãe instantaneamente lembrou-se dele, era fiel freguês. "Ah, aquele rapaz, lembro sim" ela disse.

Do sonho que tive com ele

     Sonhos são um mistério, escrever sobre um sonho é perigoso. Posso acabar contando a história mais mentirosa do mundo sem o dolo da mentira, porque a mente se organiza de um modo muito peculiar. Vou dizer do pouco que me lembro:
     Lembro dele de olhos verdes. Pele morena clara. Muito magro. Cabelo ondulado. Vozeirão de sempre. Eu não acho que ele tenha mesmo olhos verdes, mas nunca olhei de perto pra ter certeza. Sei que combinaria, certamente. Acho que o corpo tísico precisaria de um ponto assim, que demonstrasse que ele é seguro como eu tenho notado que ele é, portanto no meu sonho ele colocava num olhar esmeralda suja toda a força que ele tinha. 
     Estávamos numa festinha de rua, uma quermesse típica de cidade pequena como Quatis. Mas tudo acontecia um pouco longe do centro da cidade, parece que mais perto da minha casa. Eu estava conversando com amigos quando o percebi parado como sempre em algum canto da rua, me olhando. Um olhar intrigante, como o de quem quer fazer uma pergunta. Eu passei perto dele e ele disse: "
quero falar com você depois".
     Nesse meu sonho o meu inconsciente projetou num encontro de festinha de rua toda a minha expectativa sobre um momento com ele . Era exatamente o que eu vinha querendo a muito tempo: conversar, saber quem ele é, o que ele faz, o que ele usa que o deixa tão magro, com o que ele sonha. Finalmente ele tomava a iniciativa de sugerir um diálogo maior que os dos encontros ocasionais de esquina, que só tinham uma frase. Mas era tudo um sonho, a gente não conversou de verdade. Acordei sem saber o que ele queria falar comigo.

Passei o resto do dia visualizando a cena, criando na mente os vários assuntos que poderíamos ter tratado no sonho ou na vida real...