Ela dizia num sussurro intenso para si mesma,
como quem tenta se convencer do que diz:
- (Meu Deus do céu, meu Deus,
deixa eu sentar). Que isso, meu Deus. Que iiiisssssso.
Abria e fechava os olhos, para
conferir se focavam bem. Focavam agora, já passados muitos minutos. Só agora
conseguia falar.
-O que que é ...essa coisa que
aconteceu, meu Deus, ai, deixa eu sentar, cadê aquele banquinho que o José me
deu.
Ela estava de pé há muito tempo,
o braço esquerdo apoiado no parapeito da janela. Os
dedos das mãos esticados, que já não tremiam mais, tateavam o ambiente a
procura do assento.
-Que foi minha filha, vi um
clarão lá de longe do morro, larguei as cumbucas de água lá fora, que é que
houve? Você está pálida.
- Mãe, Deus, mããe ...
Ela andou em direção à mãe com
passos lentos pelo cômodo cor de argila, como se o corpo estivesse contra um
vento forte. Se havia uma força dentro dela, era o que a mantinha de pé, mas de
resto, estava descompreendendo seu corpo e seus movimentos. Mal conseguia saber
se estava mesmo andando ou parada. Não entendia também como se levantara do acento de
madeira. As lágrimas escorriam pela pele morena ressequida pelo sol, que nesta
época do ano estava queimando ramos.
-Deus, mãe- E dizia baixo, como
um segredo urgente - Deus, Aquele que é, o grande Pai, mãe – e soluçava- Mãe,
não consigo te explicar, olha pra mim. Enxerga por mim, mãe.
Foi como se o tempo parasse.
Ana segurou o rosto da filha,
mirando-a com uma paciência, um zelo tão especial que fez suas mãos parecerem
um abraço. Observou- a por um tempo.
Durou o tempo da sombra que o banquinho
produzia mudar de lugar, lentamente. Ana, que sentia uma energia singular vindo de
Maria, viu ali no lugar dos olhos algo como dois sóis, tamanho brilho e calor
emanavam; as lágrimas, comparou-as com a chuva que não vinha há muito tempo. Torrenciais.
Estavam envolvidas, as duas mulheres, por uma sensação de que nada daquilo
parecia real, uma leveza absoluta, um frescor que antes vinha só da menina, mas
que fora transmitida com o olhar de forma inexplicável. Soprou-se um vento no
cabelo castanho dela, grudou no rosto molhado. Maria repetiu com veemência, sem conseguir
formar voz de verdade, os lábios finos ressecados moviam-se lentamente. A
garganta arranhava cada letra que saia por ela:
- D- e-u- s, minha mãe, está a-q-u-i
dentro.
Ana, que ainda segurava o rosto da
filha, sentiu-se arrepiar dos pés à cabeça. Olhou ao redor para tentar entender
o que a menina falava, mas subitamente abaixou a pálpebra para onde devia.
O tecido do vestido sobre a
barriga muito magra enrugou-se pelo movimento de Maria, que queria olhar para
si junto com a mãe. Acompanharam juntas o respirar e as batidas do coração, que
lhe sacudia o corpo como se fossem dois no mesmo peito.
Lentamente voltaram a fixar olhar
uma para a outra, sem dizerem-se mais nada.
Os dias seguiram-se chuvosos como
se soubessem a necessidade de lavar toda a poeira que havia, para a chegada do menino mais puro e amoroso do qual se ouviu falar em toda a
história.