quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Um típico texto sobre o dia da Consciência Negra

O início desse post podia ser feito no dia da Consciência Ruiva, se existisse um. Mas toda vez que eu penso em curtir uma página com "dica de moda para negros" ou "estilo black", "pretinhos do poder" ou qualquer coisa do tipo, faço na minha mente a conversão para "dica de moda para ruivas, estilo ruivo ou ruivas do poder" simplesmente para que a minha consciência fique tranquila quanto ao fato de eu poder estar, sem querer, discriminando a mim mesma "dando ibope a esse tipo de diferenciação", ouço isso o tempo todo. "Afinal de contas, por que existe uma página específica para valorizar uma cor, vocês precisam mesmo disso?" Mas veja bem, se fosse para ruivos, não reclamariam. Existem algumas apologias como "superioridade da raça", "negro é outro nível" que mexem com a minha posição na cadeira. Mas esse é um ponto crítico, preciso dizer. Existe uma linha muito tênue entre a discriminação e estímulo ao amor próprio na cabeça das pessoas, e enquanto a valorização que vejo nessas páginas não ultrapassar esta linha, vou curtir sem medo. São sempre uma "oportunidade de refletir sobre a marginalização de determinados grupos na sociedade e a ideia de beleza e identidade no mundo moderno" ( Esta última frase eu tirei de um dos post deste blog para ruivos, que eu aposto que você não conhece. Indico logo este post sobre ruivos mestiços, porque orna com o tema)

Eu me sinto muito confortável quando entro num local feito pra mim, de um modo que eu nunca estive acostumada. Vou dar um exemplo: uma amiga me falou na semana passada sobre uma base translúcida (maquiagem básica para a pele do rosto) que é muito boa e que por ser translúcida se adequava a qualquer pele. Ontem fui à loja procurá-la e descobri que só tinha "cor-de-pele". Fico me perguntando porque raios no Brasil uma loja vende um produto que só tenha "cor-de-pele". É claro que ele não era marrom, cor da minha, mas bege claro, cor de algumas peles. Fico me perguntando também porque eu ainda vou a alguma loja procurar  uma base translúcida. Acho que é um pouco de esperança o que sinto. Mas não é a primeira vez nem a última que encontro em uma loja uma linha de bases que tenha todas as cores menos a minha. É neste momento que sei um pouco como se sente uma gordinha que entra numa loja e encontra todos os tamanhos menos o seu. Nós, gordas ou negras ouvimos que a demanda é menor, que a marca não produz este tipo, não há o que se fazer a respeito. E voltamos insatisfeitas pra casa. É neste momento que entro no facebook e encontro nessas páginas dicas de maquiagem para quem sempre foi em lojas e teve sua cor desconsiderada. Um dia, acredito que exatamente quando o Brasil não mais precisar de cotas, talvez eu encontre essas páginas com menos frequência, mas hoje elas são extremamente necessárias, consegue compreender?


Eu também parei esta semana para refletir sobre uma regra que eu cumpro ao pé da letra em qualquer estabelecimento comercial em que entro e que tenha guarda volumes. Guardo tudo, pego o dinheiro na bolsa, percorro a loja com ele nas mãos, sem bolsa. Mas quando uma amiga loira entrou comigo no supermercado na semana passada, ela disse: "Pra onde você vai Lu? Eu nunca guardo".

Pois bem. Uma parte de mim considerou que eu faço isso porque o estabelecimento considera "obrigatório" de acordo com o cartazinho que há pendurado sobre a entrada, e somente por isso. A outra parte de mim lembrou que minha prima foi parada após sair de uma loja de roupas em Barra Mansa, e no meio da praça teve que abrir a bolsa e ser revistada porque acharam que ela tinha furtado algum produto. Negra, muito simples, humilhada, abriu sua bolsa e comprovou o engano absurdo que cometera o segurança. Fico me perguntando se fariam isso com ela se ela fosse uma linda loira com um vestido de renda. Não consigo não me perguntar. Nessa reflexão, lembrei que quando entro numa loja, não havendo guarda volumes, fecho bem a minha bolsa, passo de preferência ao lado dos seguranças com as mãos abertas, principalmente quando não compro nada, com a postura de quem sai porque tinha outra coisa importante pra fazer, mas não tão importante assim a ponto de franzir a testa e parecer suspeita. (Claro que não é só pobre que comete furtos) Mas com a certeza de que se eu não fosse negra, se eu não tivesse cara de pobre, se a minha prima não tivesse passado por isso, se em outras ocasiões eu já não tivesse percebido seguranças a me acompanhar pela loja, eu não pensaria assim, não faria nada disso.

"Lu, você não tem cara de pobre" foi o que uma colega da faculdade me disse depois de eu brincar com isso. Fiquei encafifada por três motivos: primeiro porque achei que tivesse mesmo. Segundo porque foi estranho considerar que eu pudesse me encaixar num quadro de raras exceções (no qual eu normalmente insiro atrizes globais ou modelos e cantoras internacionais, ou algumas pessoas que nasceram ricas) que são negras e não têm cara de pobre. Terceiro porque na minha mente, que não deve ser diferente da maioria das pessoas, eu faço essa linha de diferenciação entre pessoas com cara de rica e de pobre, e isso é triste. Triste porque não há base translúcida que possa resolver esse problema. Essas questões são muito mais complexas do que o que a cor da pele reflete. Se a maioria dos negros também tem cara de pobre pra você, tem alguma coisa errada conosco... Se além de ter cara de pobre, de fato são, tem alguma coisa errada com o país, com o mundo.



Na semana da consciência negra, e também antes dela, ouvi dizer que ela não era importante. Mas estou mesmo curiosa pra saber o que ouvirei depois dela. Essa semana ouvi o som do Jessy Rap, um artista de Barra Mansa muito, muito bom. Participei de um evento do Coletivo Quilombo Moderno lá de Barra Mansa assim só por curiosidade. Li sobre eventos na região que valorizam a cultura negra, para nos lembrar o quanto tudo isso é rico e a gente passa direto, sem reparar. Por coincidência, por esses dias conheci o Thiago Elniño, rapper de Volta Redonda. Assisti ao clipe dele "Amigo Branco" e fiquei cheia de pulgas atrás da orelha enquanto refletia minha posição contrária às cotas para negros... Entrei também no Memorial Zumbi em Volta Redonda, pela primeira vez. Como me conheço bem, reduziria a atenção que dei a tudo isso se esta semana não estivesse gritando por todos os lados "preste atenção nisso".

Ontem foi o dia da consciência negra, mas este post não vai chegar atrasado enquanto as páginas no facebook de valorização da figura do negro forem uma realidade crescente como resposta à relegação; enquanto uma marca mundial lançar bases que não tenham a minha tonalidade de pele; enquanto o Brasil precisar de cotas e enquanto a gente deixar de prestar atenção no dia 20 de novembro.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

confissão comunitária

Se tudo for mesmo formado de espírito, vou me arrepender de não ter dedicado a minha vida ao crescimento espiritual, meu e dos outros, com mais afinco. Aposto dois kimbos que a metade do mundo faria muito mais se estivesse mais próxima dessa resposta. Evolução por evolução, dispensaria a complexidade das classificações jurídicas, teria perdido menos tempo com as fórmulas de Báscara, nem ligaria para a lei da gravidade. Até mesmo porque sempre achei que os espíritos voassem o tempo todo. Eu confesso, de pés no chão, que ainda penso que por mais católico apostólico romano que seja o indivíduo, corre o risco de se perder no ritualismo, até curioso de tão canônico das atividades dominicais em comparação com a simplicidade voante dos espíritos. Logo eu que fui coroinha por uns 10 anos.

E ainda assim, rodeada de todas essas mariposas de reflexão que me vêm à noite atormentar, acordo cedo para a reunião da Paróquia, tomada por um impulso meio eletrônico, meio programado por mim mesma, e pela ideia de que não tem mais volta, não por Deus, mas por tudo que representa toda a coisa que sempre fiz. Amo aquelas senhorinhas animadas, preocupadas, responsáveis e ranzinzas (todas as características em cada uma delas) que ficam desconsertadas com um sorriso sincero que às vezes eu dou a elas só para desconsertá-las. Amo ver os jovens indignados por serem tratados como um bolo solado, mas tragável, com identidade individual inexistente. As senhorinhas conhecem os jovens que são seus filhos, os que são amigos de seus filhos, e os que não vão na igreja. Os que estão na reunião são "os jovens". Os do contra, os irresponsáveis que vão tomar seus lugares um dia, mas só no futuro, felizmente esquecidos da impertinente ideia de por uma bateria no coral para animar a liturgia. Mas são importantes, e ai deles se não estiverem lá.
Amo quando elas começam a falar de seus casos particulares que as impedem de contribuir mais, seus calos, seu calores, suas dores nas pernas. Normalmente estarão no médico na terça, por isso não poderão ir à reunião, "desculpe padre". Aí a secretária passa para o próximo ponto e aquelas mais impacientes querem saber se falta muito ainda porque precisam sair, fazer o jantar ou o almoço porque seus filhos têm que comer!

Eu amo o fato de que seus filhos têm que comer e mesmo assim elas estão lá muito úteis e dispostas a ajudar porque sabem que para tudo funcionar elas são fundamentais. É uma coisa maior do que seus interesses pessoais, e sabem disso. Aquele envolvimento com o trabalho braçal somado ao espiritual é aquilo que se espera de quem valoriza e reconhece "o que vem do céu mas não cai do céu". E elas querem ver a coisa funcionar, ainda que do mesmo jeito que sempre funcionou, mas cada vez mais envolvente; querem ver lá dentro também seus maridos e filhos e querem depois de tudo agradecer a Deus pelo prazer de ver a família toda servindo ao funcionamento dessa coisa tão maior do que todos eles. Como não dizer que isso é digno? Como não amá-las?


Amar essas velhinhas contribui para o meu crescimento espiritual, estou certa disso. Existem muitas razões para que eu não as ame. Desde seus olhares repreendendo meus atrasos (por causa do ônibus, para onde foi o "não julgais?") que vão do meu cabelo rebelde à minha calça customizada, antilitúrgica. Mas se tudo for mesmo feito de espírito, o meu que fica voando dentro da minha roupa e não liga pra nada disso vai estar tranquilo quando do momento da acareação dos espíritos, (não que eu acredite que haja, mas seria engraçado se houvesse) quando sorrirei novamente pra elas, sinceramente como sempre, desejando que os olhares de sempre contra mim fossem só zelo. Acho que são.  Mas eu bem confesso, aproveitando a oportunidade, que queria que elas reencarnassem como jovens religiosas e que seus ônibus atrasassem às vezes, só para sentirem essa emoção.